A medalha a arte nobre da escultura
Por; António Miguel Trigueiros
Medalhística
Disciplina que
se ocupa do estudo das medalhas, em todas as suas vertentes: artística,
histórica, social, colecionista, iconográfica e tecnológica.
Até meados do
séc. XIX o estudo das medalhas andou associado ao estudo das moedas,
constituindo uma divisão da Numismática.
A progressiva
especialização dos estudos históricos, o desenvolvimento tecnológico da produção
de medalhas, como atividade industrial de criatividade artística livre e
independente, e o aumento dos seus apreciadores colecionistas, levou à
autonomização da Medalhística.
Até muito
recentemente, o estudo das medalhas englobava também outros objetos
genericamente designados por “medalhas”, tais como medalhas militares,
condecorações civis e insígnias de Ordens Militares e honoríficas.
Contudo, a
tendência atual é para uma separação do estudo destes distintivos e insígnias numa
outra disciplina mais especializada, a Emblemática.
Origem e
evolução da medalha
O termo
“medalha” significa, no seu sentido mais estrito, um objeto metálico
comemorativo de um tipo inventado no séc. XV na Itália, sem função económica ou
valor monetário, inicialmente destinado a mostrar o retrato de uma personalidade
e produzido em sua honra. Ao contrário da pintura e da escultura, que são
formas artísticas de expressão universal, a medalha figura como uma das criações
mais características do Renascimento italiano, uma forma de arte retratista, humanista
e realista, bem específica da cultura e civilização europeias.
Não são bem
conhecidos os antecedentes que terão motivado o aparecimento da primeira
medalha renascentista, cujo autor foi um pintor retratista, António Pisano, chamado
Pisanello (c. 1395-1455), executada em Ferrara ou em Florença, em 1438-39, por
ocasião da visita do penúltimo imperador bizantino, João VIII Paleólogo.
Certamente
inspirado na observação de antigas moedas e “medalhões” romanos –grandes moedas
imperiais cunhadas em ocasiões especiais e frequentemente referidas na
literatura numismática como “medalhas” –, ou em exemplos anteriores de
imitações personalizadas de sestércios romanos (1390, Francisco II de Carrara, “Reconquista
de Pádua”); e apoiado na técnica de moldagem e fundição de artistas seus
contemporâneos, Pisanello terá tido a ideia de realizar obra retratista perene,
moldada em cera e fundida em bronze, de formato redondo, de fácil manuseamento
e transporte, que contribuísse para preservar a memória dos grandes príncipes
do seu tempo.
O sucesso desta
inovadora criação plástica foi imediato, influenciando de forma marcante a
criatividade de muitos outros artistas da Renascença: de 1438 até ao final do
séc. XVI são conhecidas mais de 3 500 medalhas diferentes, de 230 medalhistas, retratando
desde imperadores, reis e príncipes, até aos mais simples cidadãos.
Acompanhando a
corrente renascentista, a medalha aparece na viragem do séc. XV na obra de
grandes pintores do norte da Europa (Quentin Metsys, 1460-1530, na Flandres;
Albrecht Dürer, 1471-1528, na Alemanha), desenvolvendo-se em escolas de
medalhistas de características adaptadas às suas próprias tendências artísticas
e técnicas nacionais.
Na França até
meados do séc. XVI, a arte da medalha vive sobretudo à sombra de artistas
italianos, antes de influenciar a criação de uma escola de notáveis
medalhistas- gravadores de cunhos para moedas, como Guillaume Dupré (ca
1576-1643) e Jean Warin (ca. 1596-1672), conhecendo desde então um forte
incremento, que perdurou até aos nossos dias.
O renascimento
do retrato em moeda – Foi a grande popularidade da arte retratista na medalha
italiana, associada ao interesse pelo estudo das antiguidades clássicas, entre
as quais se incluíam as moedas romanas, que influenciou o desenvolvimento tecnológico
necessário para cunhar moedas ostentando o retrato dos duques italianos. Da
medalha fundida passou-se então para a medalha cunhada e, desta, para as
primeiras moedas renascentistas de retrato, cunhadas desde 1474 em Milão, com a
efígie do duque Galeazzo Maria Sforza (1466-1476).
Rapidamente
assimilada nas amoedações dos estados italianos, as novas moedas de prata
ficariam conhecidas pelo sugestivo nome de «testone» (pela figuração da cabeça,
ou testa), dando origem em Portugal ao famoso nome das grandes moedas de prata
manuelinas, os tostões. Em França, a nova moeda de retrato aparece nas amoedações
reais em 1513, logo após a conquista de Milão por Luis XII (1497-1515); na
Inglaterra, o primeiro tostão de prata é ensaiado em 1504; no Norte da Europa,
sob a égide do imperador Carlos V, que desde 1516 tinha herdado Nápoles e a
Sicília de Fernando de Aragão, e iria receber o ducado de Milão em 1525, as
primeiras moedas com a sua efígie são cunhadas desde 1521, por influência das
suas amoedações italianas.
A moeda de
retrato renascentista passa a ilustrar o perfil e o busto dos soberanos com
notável realismo e pormenor, marcando bem a diferença com as figurações
representativas e alegóricas das anteriores amoedações medievais.
A medalha em
Portugal
Apesar da
considerável influência exercida pelo Renascimento italiano na pintura e na
arquitetura nacionais e, inclusivamente, no desenho de moedas, como os famosos
São Vicente de ouro de D. João III e D.
Sebastião, a cultura portuguesa não assimilou esse novo costume da medalha, nem há memória de ter vindo trabalhar para Portugal qualquer medalhista italiano, tal como sucedeu nas outras grandes cortes europeias.
Não deixa de ser interessante verificar que, no Portugal da época dos Descobrimentos, rico no comércio das especiarias, faustoso na importação das mais belas sedas italianas,
diplomático em
todas as cortes europeias, não tenha havido uma única produção, uma única
encomenda, de medalhas retratando D. João II, ou o magnífico rei D.
Manuel I, ou
ainda o seu filho D. João III. Nem uma única medalha, nem uma única moeda de
retrato foi feita em Portugal... Este pequeno pormenor, nunca referido pelos nossos
historiadores, marca bem o atraso cultural da sociedade portuguesa na época de Quinhentos.
Porventura, devido à falta de preparação dos gravadores e ourives que
trabalhavam para a Casa da Moeda de Lisboa, incapazes de realizar obra de retrato
naturalista e realista, a moeda nacional arrasta-se em figurações simbólicas e
emblemáticas de má qualidade artística, até à grande reforma da moeda de ouro empreendida
por António de Holanda e seu filho Francisco, entre 1544 e 1560.
Será só mais
tarde, quando a política das alianças europeias distribuiu pela Europa as
infantas portuguesas casadoiras, filhas e netas do Venturoso, que as vemos
retratadas no metal: D. Isabel, mulher de Carlos V, imperatriz da Alemanha e
rainha de Espanha (1503-1526-1539); D. Beatriz, duquesa de Sabóia
(1504-1521-1538); D. Maria, duquesa de Parma (1538-1565-1577), irmã do
condestável de Portugal D.
Duarte
(1541-1576), também ele retratado em medalha.
Outros retratos
dão-nos a conhecer a mãe de D. Sebastião, D. Joana de Áustria (1535-1575) e o
próprio rei, em 1570, cuja morte entregaria o trono a outro neto de D. Manuel,
Filipe I de Espanha, tudo obras de escultores medalhistas italianos, como Leone
Leoni, Jacopo de Trezzo e Pastorino di Pastorini.
As primeiras
medalhas portuguesas só aparecem no reinado de D. João V, sendo da autoria do
gravador francês António Mengim (1690-1772), contratado em 1720 para abridor de
cunhos da Casa da Moeda de Lisboa, por ocasião da sua reforma e modernização
fabril. Em 1721, por sugestão do 1.º Marquês de Abrantes e com risco inicial de
Vieira Lusitano, Mengim gravou a medalha comemorativa da instituição da Academia
Real da História (1720), com gravuras inspiradas num medalhão do imperador romano
Vespasiano.
No final do
séc. XVIII apenas existiam em Portugal dois estabelecimentos fabris equipados
com balancés com a potência necessária à cunhagem de medalhas comemorativas de
grande módulo: a Casa da Moeda e o Arsenal Real do Exército, ambos em Lisboa,
onde foram produzidas as poucas medalhas gravadas no reinado de D. Maria I.
Desse período merecem destaque as obras assinadas pelo flamengo José Gaspard
(1727-1812), sucessor de Mengim como primeiro gravador da Casa da Moeda; e pelo
português João de Figueiredo (1725-1809), no Arsenal Real, onde se formaram
muitos dos gravadores numismáticos ativos durante a primeira metade do séc.
XIX. João de Figueiredo foi também o gravador das célebres medalhas-plaquetes alusivas
à estátua equestre de D. José I (1775), fabricadas com a porcelana descoberta
por Bartolomeu da Costa.
Charles Winner
em Lisboa
Mais uma vez, como anteriormente, a falta de gravadores especializados na Casa da Moeda de Lisboa, levou à contratação do gravador belga Charles Wiener, em 1864, que aqui fundou uma escola de gravura e modernizou o equipamento de gravação de cunhos. São dele e dos seus dois irmãos, Leopold e Jacques Wiener, a espantosa série de 41 medalhas de catedrais europeias, realizada entre 1850 e 1880, cada uma com uma visão em perspectiva do interior do corpo principal da igreja, de grande efeito e maestria escultórica. Duas dessas medalhas são dedicadas ao convento da Batalha (realizada em 1853) e ao Mosteiro dos Jerónimos (em 1867).
No final do
séc. XIX a arte da medalha cunhada sofre uma evolução revolucionária, ao ser
introduzida a técnica da gravação de cunhos por meio de um torno ou pantógrafo redutor
tridimensional, inventado pelo francês Victor Janvier e patenteado em 1889. A
nova máquina permitia a reprodução de uma escultura de grande diâmetro (o modelo
original do artista) numa escala mais pequena e a sua gravação diretamente num
bloco de aço macio. Uma dessas máquinas Janvier seria adquirida em 1912 para a
Casa da Moeda de Lisboa, onde ainda hoje funciona.
Desde então, a
arte da gravação de moedas e de medalhas deixou de ser monopólio de artistas
altamente especializados – gravadores de cunhos –, abrindo-se à criatividade
artística de escultores das mais variadas escolas, estilos e técnicas. Em Portugal,
José Simões de Almeida (Sobrinho) (1880-1950) e João da Silva (1880- 1960)
foram os introdutores deste novo processo de escultura para medalha,
responsável por um forte incremento do interesse no estudo da arte da medalha e
pela sua atual divulgação e popularidade como forma de arte acessível ao grande
público.
A medalha
contemporânea
Sempre que se
fala na medalha contemporânea, é lugar comum referir-se a imperiosa necessidade
de dar ao artista toda a liberdade criativa, quer quanto à forma, quer quanto
ao conteúdo. E assim aparecem medalhas que, mudando-se as legendas, podem
servir para evocar qualquer evento, por mais díspar que sejam. Ou são
construídos objetos metálicos, muitas vezes de multipartes que se encaixam,
para definir conceitos tão simples como um centenário ou a figura de uma
distinta personalidade. Todas essas formas de expressão artística são dignas e
merecedoras de aplauso, mas não são, nunca serão, medalhas, no seu
conceito mais
nobre e tradicional.
A medalha
contemporânea pode ser tão criativa hoje, como o foi no tempo de Pisanello e de
Dürer, no barroco de Dupré, no romântico deWiener, no protesto de Goetz, na
estatuária de João da Silva ou de Álvarode Brée, de Euclides Vaz e de Joaquim
Correia, ou ainda, na renovação inovadora de Helder Batista, José Aurélio e
Irene Vilar.
A criatividade
na arte da medalha não se mede pelas fantasias dalianas das formas, nem pelas
técnicas de transformar novos materiais, mas sim e sempre, enquanto for
medalha, pela sabedoria de se conseguir construir uma narrativa estética e
estilística nas suas faces, de preferência retratista de pessoas, símbolos ou
imagens, transformando-a numa mensageira
gratificante de
ser exibida e contemplada.
Com muita
frequência vemos artistas refugiarem-se numa modernidade forçada, “desconstruindo”
formas e modelos, apenas para camuflar a sua incapacidade de modelar o barro, de
esculpir um retrato humanista e realista, ou de desenhar um monumento em
perspectiva. Ontem como hoje, a medalha deve ser acarinhada como uma arte nobre
da escultura, uma forma perene de fixar no metal memórias de eventos que marcaram
a nosso tempo ou, muito simplesmente, para dar largas a uma criatividade
artística, criando e modelando no barro ou no gesso, depois transposto para o
metal, uma obra de arte numa forma reduzida a duas faces.
António Miguel
Trigueiros
Miguel Ângelo
Buonarroti, por Leone Leoni, c. 1561, bronze, fundida, 59 mm
O grande mestre
do maneirismo italiano

O criador da
medalha como forma independente de arte
A imperatriz
Faustina, anónimo, c. 1480, bronze, fundida, 107 mm
A influência da
numismática romana nas medalhas renascentistas italianas
Afonso V de
Aragão, rei de Nápoles, por Pisanello, c. 1448, bronze, fundida, 105 mm
A influência da
pintura na composição dos reversos das medalhas
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Henrique IV da
França e Maria de Medici, por Guillaume Duipré, 1603,
bronze,
fundida, 67 mm
_______________________________________________________
Galeazzo Maria Sforza, duque de Milão, por Cristoforo
Caradosso, c. 1474
Testone de prata, 29mm, 9,8 gr
________________________________________________________

O cardeal Richelieu, por Jean Warin, 1631, chumbo, cunhada,
53 mm
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Dedicada a Carlos V pelo senado de Milão, por Leone Leoni,
c. 1525
testone della pièta, 30 mm, 11,8 g
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A imperatriz Isabel, filha de D.Manuel I de Portugal, por
Leone Leoni, c. 1546,
bronze, fundida, 72 mm
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O infante D. Duarte de Portugal, neto de D. Manuel I, c. 1572, cobre, fundida, 68 mm
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Carlos V e Isabel de Portugal, por Leone Leoni, c. 1550,
bronze, fundida, 36 mm
Dedicada pelo imperador em memória da sua falecida mulher
(1539)
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Duas infantas de Portugal: à esq., D. Beatriz, filha de
D.Manuel I, duquesa de Sabóia (prata, 56 mm);
à dir., D. Maria, neta do Venturoso, duquesa de Parma
(bronze, 55 mm)
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Estátua equestre de D. José I , por José Gaspard, 1775,
prata, cunhada, 46 mm.
A medalha aparece em Portugal como obra de gravadores
franceses e flamengos
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A Basílica de São Pedro no Vaticano, por Jacques Wiener, 1857, bronze, cunhada, 59 mm
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Thomas Gresham, por William Wyron, 1844, prata, cunhada, 73 mm
Pelo autor das gravuras da moeda decimal de D. Maria II
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Bibliografia:
Fundação
Calouste Gulbenkian, Medalhas do Renascimento, Lisboa, 1979; Grierson, Philip,
Numismatics
Oxford University Press,Oxford,
1975; Jones, Mark
The Art of the Medal, British Musem,
Londres,1979; Lamas, Arthur
Medalhas
Portuguesas e Estrangeiras referentes a Portugal, ed. do autor, Lisboa 1916; Trigueiros,
António Miguel
Numismática e
Medalhística, XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e
Cultura, ed.
autor, Lisboa, 1985.
Excelente matéria do Trigueiro. No entanto, achei curioso o fato dele não citar a medalha da N. S. da Conceição.
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